quarta-feira, 7 de outubro de 2009

No prefácio ao livro Formação Histórica do Brasil, Sodré afirma que a motivação para o estudo das raízes da nossa história era a compreensão do momento presente. Buscar no passado histórico os elementos que lançassem luz sobre os dilemas contemporâneos, uma vez que a sua sombra se projetava ainda sobre o presente. Ao lado desta motivação primordial, Sodré, afinado com a moderna historiografia, considerava que a vivência dos problemas da sociedade brasileira da sua época levaria a reavaliar e aprofundar a compreensão do passado. “Não pode surpreender”, afirma, “que uma fase de profundas alterações encontre reflexos em todos os domínios, e que demande, inclusive, uma revisão histórica”.[1] Parte expressiva da sua obra historiográfica girou em torno desses dois eixos.

Os anos 50-60 - período no qual uma parte significativa da extensa obra do historiador foi elaborada - testemunharam a ocorrência de inúmeras transformações que afetaram o destino dos povos do chamado mundo subdesenvolvido: por um lado, o avanço das lutas de libertação nacional na Ásia e na África acelerou o processo de descolonização e de afirmação nacional; por outro, a adoção de uma agenda econômica desenvolvimentista especialmente na América Latina exigiu a elaboração de reflexões criativas que enriqueceram a teoria econômica como um todo.

Segundo Gershenkron, autor de um livro clássico sobre o “atraso” econômico, os países que chegaram mais tarde “corrida” industrialista tiveram que despender um esforço ideológico de grande envergadura para enfrentar a tensão existente entre o estado real das atividades econômicas e os obstáculos que se interpunham ao desenvolvimento industrial. Não deve, portanto, surpreender-nos o fato de que a industrialização apoiou-se firmemente sobre as ideologias nacionalistas do século XIX, ou sobre as ideologias socialistas, no século XX.[2] Para a Inglaterra, berço da Revolução Industrial, as mudanças tecnológicas e na organização do trabalho aconteceram sem que fosse preciso para estimulá-la uma ideologia enaltecendo os predicados da industrialização vis a vis a atividade agrícola e pastoril. E as vantagens de um sistema sobre o outro, em se tratando do comércio internacional, se afirmaram na prática. Também não foi preciso lutar contra a noção estabelecida de que o homem comum do povo não possuía as qualidades indispensáveis de adaptação e de habilidade técnica para operar a transformação que se anunciava. Nos países onde a industrialização ocorreu por imitação e emulação inglesa, como por exemplo, a França da segunda metade do século XIX, a situação era diversa e coube aos saintsimonianos preparar ideologicamente o caminho para a mudança, louvando as vantagens da indústria para a grandeza da pátria e o engrandecimento dos franceses.

Para o mundo subdesenvolvido, a situação era ainda mais complicada devido à persistência da atmosfera mental produzida pela situação colonial de subordinação. Sujeito, também, pela sua formação, a estas injunções históricas, o Brasil não constituiu uma exceção; com efeito, logo após a Segunda Guerra Mundial, a intensificação da industrialização que já se iniciara precisou do respaldo de uma forte sustentação ideológica para superar as dificuldades da situação. Setores do empresariado e das Forças Armadas, mas também, do movimento operário e do Partido Comunista apoiaram, em diversos momentos, o enorme esforço necessário a completar a industrialização retardatária e este apoio estava associado ao desenvolvimento de uma ideologia nacional-desenvolvimentista. O desenvolvimentismo consistia no “projeto de superação do subdesenvolvimento através da industrialização integral, por meio de planejamento e decidido apoio estatal.”[3] A ideologia nacionalista reforçava a tendência desenvolvimentista insistindo na presença do Estado nos setores considerados estratégicos, como, entre outros, a mineração, energia, transportes, telecomunicações. A alternativa às inversões estatais era o recurso ao capital estrangeiro, visto, porém, com desconfiança pelos nacionalistas. Numa vertente nacionalista mais radical encontravam-se os socialistas lutando em duas frentes: de um lado, contra as forças internas contrárias à industrialização ampla, de outro, se esmerando em evitar, por considerá-la nefasta do ponto de vista econômico e atentatória à soberania do país do ponto de vista político, a sua completa integração à órbita norte-americana. Esta era, em poucas palavras, a base do programa de luta anti-feudal e anti-imperialista[4] do Partido Comunista do Brasil, que reunia em torno desses objetivos, além dos seus militantes, muitos simpatizantes apartidários do socialismo.

O Instituto Superior de Estudos Brasileiros, organismo de pesquisa e difusão cultural, foi uma arena da luta ideológica que se travava em prol da industrialização. Durante a primeira parte da sua existência, aquela que coincidiu com o período do governo Kubitschek, a corrente nacionalista-desenvolvimentista foi predominante. No período seguinte, de 1961-64, surgiu a crítica ao nacional-desenvolvimentismo e uma crescente politização a favor das reformas de base e da legalidade democrática.[5] Seus membros produziram obras de reflexão sobre a consciência nacional, a herança colonial e o futuro projetado do país. Nelson Werneck Sodré foi um membro importante do ISEB desde sua fundação, mas certamente esteve mais identificado com a instituição na sua segunda fase. Oficial reformado do Exército, e membro do PCB, Sodré era um representante da corrente socialista dentro das forças armadas, tendo iniciado sua militância no período imediatamente posterior à segunda guerra mundial, destacando-se imediatamente:

“Do ponto de vista de militância intelectual, a figura mais ativa já era, talvez, a do socialista major Nelson Werneck Sodré. Com seu tom sempre menos inflamado que o de seus colegas socialistas, com seu estilo professoral, persistia na argumentação de que a industrialização correspondia ao processo histórico fundamental de reestruturação da economia neocolonial brasileira.” [6]

Tendo como horizonte e objetivo de longo prazo a instalação de uma sociedade socialista, Sodré discutiu, nas suas obras históricas publicadas quando no ISEB, o significado do processo de industrialização no seu conjunto, combatendo os argumentos negativos produzidos pela ideologia do colonialismo que difundiam a descrença no país e nos homens que o habitavam e propalavam a sua incapacidade para produzir e conviver com formas avançadas de organização social e econômica.

Mesmo obras de Nelson Werneck Sodré dedicadas à análise da economia da época moderna - pelos temas abordados, pela problemática sugerida, e pelas conclusões propostas - podem ser lidas como uma contribuição não só ao aprofundamento dos conhecimentos sobre a época colonial, mas também como uma contribuição ao debate coevo. Ao abordar aspectos da história econômica em livros escritos no período do ISEB, Sodré buscou tratar de temas que serviam para enfatizar os aspectos que na ótica do programa anti-feudal e anti-imperialista que defendia se erigiam em argumentos falaciosos contra a industrialização ou em formas de pensar que eram sobrevivências da situação colonial vivida pelo Brasil, constituindo propriamente uma parte importante da chamada herança colonial.

A análise de Sodré sobre a economia da Época Moderna sublinha o papel do capital mercantil na Europa e no Novo Mundo, penetrando na produção e inviabilizando a pequena produção independente, mas sem a capacidade de sozinho colocar em funcionamento o modo de produção capitalista. O caso de Portugal, ao invés de fornecer argumentos para a tese do caráter capitalista da colonização, ilustra a tese inversa, ou seja, que o desenvolvimento do capital mercantil e a centralização política, que foram indispensáveis na fase de construção do império colonial, na ausência de outras circunstâncias internas favoráveis (Sodré destaca a fraqueza do artesanato e da manufatura, mas seria possível agregar a ausência de uma revolução agrária), eram aspectos insuficientes para desencadear o desenvolvimento do capitalismo.

O mercantilismo foi frouxamente aplicado a Portugal, talvez devido à ausência de um setor artesanal forte, e explica a fraqueza do mercado interno e a situação da infra-estrutura, quase inexistente. Nestas circunstâncias, o ouro retirado do Brasil servia para abastecer Portugal de gêneros alimentícios, como o trigo e de produtos industrializados que não eram fabricados internamente. O livro sobre o tratado de Methuen[7] procura discutir as condições indispensáveis à industrialização integral. A questão que o livro se esforça em responder é até que ponto o acordo econômico, entre Portugal e Inglaterra, teve o poder de alterar os destinos da economia portuguesa. A historiografia tradicional que acreditava na “precocidade” lusa responsabilizava o tratado de Methuen pelo atraso econômico, bastante evidente, no século XVIII. O tratado estaria na origem da desindustrialização de Portugal, assim como da conversão das terras de pão em terras de vinha. A evasão do ouro do Brasil em direção à Inglaterra, que desequilibrava a balança de pagamentos, também seria conseqüência do tratado. As acusações ao acordo econômico são apresentadas como motivo do declínio luso porque levaram à condição de subalternidade portuguesa no desenvolvimento comercial do mundo moderno. Sodré procura analisar cada uma das acusações e constata a ocorrência dos fatos, mas questiona o papel do tratado no seu desencadeamento.

“Afirmar que essa evasão derivou simplesmente do tratado de 1703 – que coincidiu, de fato, com a época em que se desenvolveu a produção brasileira do ouro – é desconhecer os rudimentos do moderno comercialismo. Estarão, hoje, os Estados Unidos com quase todo o ouro do mundo porque tenham firmado com os demais países tratados do tipo do que Methuen arrancou aos homens públicos portugueses do século XVIII? Há diferenças substanciais entre uma situação e outra, sem dúvida, mas a razão fundamental do atual primado norte-americano é, na essência, a mesma que firmou a posição inglesa face a Portugal, no século XVIII: a superioridade de estrutura econômica, no amplo quadro do desenvolvimento capitalista.

Com tratado ou sem tratado, a verdade é que, no século XVIII, Portugal era já uma dependência econômica inglesa.”[8]

O comércio português de importação e exportação, assim como parte do comércio de retalho era dominada por casas inglesas (somente em Lisboa eram 90). Só o comércio com os portos brasileiros era exclusivo dos portugueses. As manufaturas do reino eram limitadas e o mercado interno era suprido pela importação de produtos ingleses, na maioria. Em conclusão, a subordinação portuguesa ao desenvolvimento comercial inglês foi um episódio da expansão capitalista, que ocorreu de modo desigual nas diferentes partes do globo e não foi causada pelo tratado. Este apenas sancionou uma situação existente, no máximo acentuando-a. Transformou as práticas comerciais vigentes em acordo comercial.

O caso do “atraso” português no desenvolvimento do capitalismo, conforme analisado no livro sobre o tratado de Methuen servia como objeto de reflexão para a sociedade brasileira contemporânea do ISEB, uma vez que remetia, primeiro, para o fato de que os aspectos econômicos e sociais que não desapareceram com a independência política, precisavam ser enfrentados para que se alcançasse a industrialização integral, se revolucionasse o campo e, finalmente, a tarefa de formar um mercado interno forte e integrado se concluísse. Em outros termos, era preciso liquidar a herança colonial. Em segundo lugar, chamava a atenção para a questão da desigualdade entre os países e o papel da diplomacia, situação vivenciada pelo Brasil nos anos 1950-60. Ao afirmar que o tratado não podia ser culpado de provocar o atraso econômico português e a submissão do país à economia inglesa, Sodré levantava a questão dos constrangimentos estruturais à industrialização integral. O imperialismo americano substituíra o imperialismo de livre comércio da Grã-Bretanha[9], mas a questão dos tratados internacionais e a troca desigual que operava entre países industrializados e países ainda fortemente dependentes da exportação de produtos primários para equilibrar sua balança de pagamentos permanecia a mesma. Da ótica da sua argumentação, o problema de fundo não estava na assinatura de tratados preferenciais, mas na estrutura de produção que condenava alguns países a ocuparem um lugar subordinado no comércio internacional.

E em terceiro lugar, e talvez o aspecto mais importante, remetia para uma discussão sobre a questão do protecionismo, procurando responder à pergunta: até que ponto uma política tarifária de proteção à indústria era suficiente para promover ou intensificar a industrialização?

No Brasil, desde fins do século XIX os debates sobre a industrialização ou sobre o industrialismo, como se dizia na época ecoando as práticas mercantilistas, estiveram centrados nas políticas protecionistas que eram lembradas, sobretudo, nos momentos em que as crises econômicas atingiam as indústrias existentes. Mas a adoção de uma política tarifária como método de incentivo industrial era bastante controvertida ainda nas primeiras décadas republicanas, até a década de 1930 pelo menos. Cada tentativa de reforma desencadeava acalorados debates, dada a impossibilidade de conciliar tantos interesses antagônicos. Como resultado, o sistema tarifário brasileiro não tinha caráter definido – não era liberal, nem protecionista, fora elaborado com finalidades fiscais, para cobrir déficits do Tesouro, oscilando durante todo o período entre políticas protecionistas e livre-cambistas. Compreende-se que o interesse fiscal preponderasse, uma vez que a arrecadação aduaneira representava mais da metade da receita geral.

Para Nícia Vilela Luz,[10] os primeiros ensaios de industrialização foram frustrados pela política fiscal do Império, que correspondia, grosso modo, aos interesses da lavoura. O moderado protecionismo resultante das tarifas essencialmente fiscais não era suficiente nem para impulsionar nem mesmo sustentar as indústrias que surgiam como reflexo dos surtos de expansão do país. Além disso, o desenvolvimento dos meios de comunicação e o progresso técnico da indústria européia inibiriam ainda mais, na década de 1870, a estrutura industrial arcaica e incipiente do país.

Os primeiros nacionalistas econômicos surgiram justamente para se opor à política de não intervenção do Império no âmbito da indústria. Pleiteando o amparo governamental tinham os industrialistas em mente uma proteção baseada essencialmente na tarifa aduaneira. Suas reivindicações, na década de oitenta, encontravam ressonância nas manifestações populares contra o comércio estrangeiro e o encarecimento do custo de vida. O argumento central no pensamento nacionalista-industrialista era que a industrialização diminuiria as importações e, em conseqüência, contribuiria para produzir o equilíbrio na balança de pagamentos. Este argumento se enfraqueceu quando ficou comprovado que, num curto prazo de tempo, o problema não podia ser solucionado. Ao contrário, qualquer esforço de ampliar o parque industrial brasileiro precisava contar com um aumento temporário das importações.[11]

Do jogo de interesses conflituosos envolvendo os industriais, os cafeicultores, o Tesouro e os consumidores, resultou um sistema tarifário anárquico, na opinião de analistas como Amaro Cavalcanti e Sezerdelo Correa[12]. Com o tempo, as tarifas altas que protegiam algumas indústrias começaram a desagradar a parcelas cada vez mais importantes da opinião pública, levando-as a atribuírem à indústria nacional todos os males decorrentes, principalmente, de uma economia inflacionária e de um crônico desequilíbrio da balança de pagamentos, desequilíbrio que a indústria prometera sanar e que, no entanto, só viera agravar. [13]

Mas de todo modo, até o período desenvolvimentista, o nacionalismo econômico baseou-se principalmente na alegação de conquistar pelo fomento da produção nacional o equilíbrio da balança de pagamentos, e foi um dos fatores que pesou na industrialização do país, mesmo se nos primeiros anos da República, a necessidade de amparar e desenvolver uma classe industrial que seria o esteio do novo regime se mostrou igualmente importante. Após a crise do Encilhamento o argumento da balança de pagamentos retomou fôlego ao lado da ação de empresários particularmente aqueles com suficiente prestígio político para conseguir uma tarifa alfandegária suficientemente protecionista para as suas indústrias. Também jogou um papel a necessidade de proteger um setor da economia que contribuía com uma quantia não desprezível para o fisco e uma atividade na qual estava empregado um contingente respeitável da população urbana que, se desamparada poderia criar um grave problema social. Principalmente depois da Primeira Guerra Mundial este último aspecto pesou na balança.

Roberto Simonsen deu novo impulso ao nacionalismo econômico de cunho industrialista, ao tentar renovar o pensamento industrial brasileiro, com seu conceito de função social da indústria, cujos objetivos eram reconciliar a indústria com a população e o capital com o trabalho, mas na prática retomava as reivindicações protecionistas. [14]

As propostas de Sodré para a sociedade brasileira procuravam ir além da herança industrialista das primeiras décadas republicanas, das propostas de Simonsen e até mesmo das considerações econômicas pressupostas na ideologia desenvolvimentista da primeira fase do ISEB. Para tanto Sodré procurava colocar a questão do protecionismo para as indústrias dentro de uma perspectiva de transformação social mais ampla, frisando a insuficiência de uma política tarifária, conquanto necessária, para garantir a industrialização integral e a formação de um sólido mercado interno. Neste aspecto as considerações que teceu sobre a história do tratado de Methuen são esclarecedoras.
bianca

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